Acho
que por esta altura já toda a gente reparou que em Portugal, como no resto do
mundo desenvolvido, já há muito
que não é privilégio raro alguém concluir quer
uma licenciatura quer um mestrado, graus equivalentes
ao bacharelato e à
licenciatura pré-reforma de Bolonha, respectivamente.
Por
não ser privilégio, mas mesmo que fosse, é com renovado vigor que a cada ano
que passa aumenta o número
de pessoas esclarecidas que desprezam esses
licenciados e mestrados que se apreciam pelos seus graus,
muito particularmente
àqueles que se fazem tratar pelo título de doutor.
Compreende-se
que em meados do século XX, num Portugal pobre e iletrado, mais o contexto
duma
ditadura que promovia o culto da hierarquia, quem alcançasse uma mera instrução
de ensino superior
quisesse tomar para si um título que o engrandecesse entre
os demais.
Enganando
quem não a tinha alcançado, esses licenciados na cidade voltavam às origens
rurais
com uma licenciatura e a convicção de merecerem um tratamento
deferencial com um título que não era seu:
«‘Senhor’,
não: ‘senhor doutor’!»,
exigiam
esses simplórios das pessoas simples.
E
as tais pessoas simples impressionavam-se, não com a conquista do mais alto
nível académico
possível, mas pela forma autoritária que o seu detentor a bradava
como sinal de poder e direito ao respeito.
Se ao menos soubessem que o respeito
vem do mérito, e não do estatuto.
Acontece
que tal cretinice nunca nos passou de moda cá em Portugal, nem após o 25 de
Abril de 1974. Pelo contrário,
parece ter-se estendido com a crescente
afluência de pessoas ao ensino superior que usurpavam agora para si também
aquele título.
Mas
ao mesmo tempo, quando com o fim da ditadura e a abertura à mobilidade
transfronteiriça muita gente começou
a tomar contacto com os reais costumes de
trato formal académico de outros países desenvolvidos, começou a tornar-se
conhecido o facto do «doutor» servir só para se referir a médicos e detentores
de doutoramentos. Só que como toda
esta fraude é para consumo doméstico, os
licenciados e mestrados têm conseguido manter o título mesmo nos nossos dias.
A
criatividade do impostor
Então
surge uma explicação defensiva que seria hilariante se não fosse dita como se
fosse muito a sério: que os licenciados
podem usar abreviação «Dr.» e que os
doutorados, esses sim, até têm direito ao «Doutor» escrito por extenso.
Uma
patetice terceiro mundista que inventámos para manter o costume do trato oral
do doutor, que é o que interessa
aos que a defendem, já que pouca
correspondência escrita hão-de receber esses insignificantes.
A
abreviação tem o mesmo significado que a palavra que abrevia, ou cabe na cabeça
de alguém um «Sr.» ser menos
que um «Senhor»?
Até
o próprio desconhecer do valor duma abreviação é sintomático da ignorância e fé
no estatuto dessa gentinha
que lhe crê diferenças de significado.
Claro
que a esta discussão poderemos trazer a própria necessidade dos títulos. Vejo
como expressão de parolice
professores universitários tratarem-se mutuamente em
presença dos alunos com uns tristes «o professor doutor
Tal isto» e «o
professor doutor Tal e Tal aquilo». E por todo o lado por este país,
colegas de
trabalho — colegas! — tratam-se por doutor. Extraordinária mediocridade.
O
resultado ao que isto chegou é termos desde arrumadores de carros a tratarem
por doutor e doutora toda e qualquer
pessoa que lhes possa dar uma moeda, até
aos mais altos arrumos da nossa sociedade, onde os dizeres de pompa
e
subserviência são a moeda corrente.
Please,
call me Steve
Concluir
um doutoramento, até isso, não é grande conquista intelectual nem sinal de
grandeza nenhuma de espírito.
Um doutorado em qualquer país de tradição mais
igualitária, onde as pessoas se fazem valer pelo seu mérito pessoal,
rapidamente dispensa aos seus colegas o tratamento formal.
Só
uma pequenez intelectual precisa de ser revestida de todo o aparato hierárquico
que lhe seja possível.
Em sociedades democráticas e igualitárias, onde as
ideias e posições intelectuais valem pela qualidade da sua
sustentação, o apelo
à magistralidade da pessoa é uma falácia e um grande sinal do seu contrário.
Quando
um estrangeiro cá chega impressiona-se primeiro com a quantidade de
doutoramentos que por cá há,
achando-nos um povo muito dotado academicamente.
Mas logo cai a impressão por terra quando descobre,
como quem sente ter
descoberto uma fraude, que afinal é tudo uma fantasia terceiro-mundista.
Ao
menos que a pretexto da reforma de Bolonha se eduquem as pessoas para o uso
correcto do termo «doutor».
Digamos-lhes que é para harmonizar com as
convenções da civilização.
Os
doutores sem doutoramento deste país são assim, no panorama internacional, como
aqueles que usam
roupas e acessórios de marcas contrafeitas. Se por cá até um
doutoramento se pode fazer como quem realiza
um mais um trabalhinho, meramente
mais longo, de ensino superior — tira ideias daqui, tira dali,
junta-lhe
eventualmente um estudo empírico, e embrulha-o numa redacção pobre de escrita e
de espírito por
quem não está habituado a ler — não se tirando daí grande
mérito, tornam-se os falsos doutores então uma
coisa ainda mais ridícula.
Tirar
um doutoramento, em Portugal, é para alguns uma forma de adiar o desemprego,
obtendo uma bolsa da FCT
como forma de subsídio de desemprego, tornando-se no
fim, os mais medíocres, professores doutores.
Os
doutores da treta fazem deste país uma terra de académicos e intelectuais
contrafeitos. Noutras áreas, há
aparentemente ainda outros títulos usurpados em
Portugal, como os engenheiros-técnicos se apropriam do título de
engenheiro.
Não é só tudo falso, como é por cá o mau uso generalizado dos títulos uma
fraude socialmente aceite.
O
mau gosto é tão mau, que não são raros os que até pedem ao banco que gravem o
seu nome com o título
académico — no seu cartão de débito.
Desconfio
que muitos doutores (Drs.?) portugueses se sentiriam nus se se permitissem
deixar que o tratassem
por senhor, por senhora, ou simplesmente pelo seu nome.
Só que neste país onde já não há mais quem não
saiba, realmente, que a quem
conclua um doutoramento é que lhe é conferido o título de doutor, parece-me que
insistirmos todos neste teatro é vivermos um conto nacional cheio de reis que
vão nus, todos vestidos de
doutorice num tecido intelectual inexistente. Nem
livros lêem, estes doutores.
Tratarmo-nos
uns aos outros por doutor é tão oco como bacoco. Chega deste envergar de
patentes
académicas que não correspondem nem a valor intelectual nem a coisa
alguma. É pindérico,
é patético e, senhores doutores e senhoras doutoras, é
muito parolo.
A
cada dia que passa, há mais gente a saber que ser doutor é ser parolo.
Não
seja um.
RC Pinho - escritor da Internet
RC Pinho - escritor da Internet
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