sábado, 21 de junho de 2014

Manuela Câncio Reis/Soeiro Pereira Gomes

 
Ao dar a volta aos papeis da minha mãe há muito pouco tempo, encontro não bem este artigo mas estas palavras escritas por ela num papel muito velhinho e amarelo muito dobradinho. De tal maneira que quando o abri, rasgou.se todo. Ainda consegui juntar alguns bocadinhos e ler., mas o que consegui ler foi o que ouvi durante toda a minha vida até ao dia 18 de Julho de 2014. Era um dos assuntos preferidos dela durante a sua vida inteira, do qual ela tinha o maior dos orgulhos em contar,  quando se proporcionava. Outros então, já não se podiam ouvir, mas este não! era ouvido por mim e pelos presentes com o maior dos gostos e atenção. Mas há mais desse tempo que guardo com todo o orgulho e carinho que irão aparecendo.
E hoje nas minhas buscas do Google, qual não foi o meu espanto vejo esta entrevista, que ao fim e ao cabo dizia tudo o que eu andei a ouvir duranta  a minha vida inteira, O Batista Pereira, ( quem ensinou a minha mãe a nadar, que foi ele que a ajudou e lutou muito para ela ser construída por causas das correntes muito traiçoeiras do Tejo. O Zé Ralha, o seu casamento que acabou por durar poucos anos o não poder haver filhos, o peixe que ele não gostava, a sua estadia na Fabrica do Cimento Tejo, lugar que ocupou do sogro, quando veio de África, o ser Regente Agrícola etc etc...., mas o que ela mais falava era no abrir da janela todos os dias ( porque ele vivia junto à casa da minha avó) em Alhandra, para que os populares escutassem na rádio a informação da emissão portuguesa da BBC, às 21h00, já que os cafés estavam proibidos de ligar os aparelhos de rádio àquela hora. ..... Adorei encontrar este texto e fiquei extremamente comovida, resolvendo partilhar esta historia real e linda que poucos ou nenhuns saberão já nesta altura.
 
Há esqueci-me de dizer que a Manuela Câncio Reis era a melhor amiga da minha mãe.
 
 
 
O autor de “Esteiros”, o livro dedicado aos “filhos dos homens que nunca foram meninos”, nasceu em Gestaçô, Baião, no Porto, mas foi um grande amor chamado Manuela Câncio Reis que o conduziu até Alhandra. Foi à beira Tejo que Soeiro Pereira Gomes, funcionário da fábrica de cimento, escreveu sobre as vidas miseráveis dos meninos operários. Até partir para a clandestinidade. A 14 de Abril celebram-se os 100 anos sobre o seu nascimento


“Estão amarelecidas as folhas dactilografadas que te mandei naquele Outono de 1944, e esbatido pelo tempo o vermelho da tinta com que foram escritas. Estão amarelecidas, e quase ilegível o que te contei. Mas conservam ainda manchas do bolo em que as introduzi”.
As palavras foram escritas por Manuela Câncio Reis, mulher de Soeiro Pereira Gomes, e estão bem preservadas na sua memória. Aos 99 anos (completa um século de vida a 2 de Janeiro) Manuela Câncio Reis, a mulher que fez o escritor neo-realista rumar a Alhandra para um casamento que durou escassos anos, cortado abruptamente pela necessidade de fuga ao regime, repete memórias que transcreveu para um livro: “Eles vieram de madrugada – cartas para a clandestinidade a Soeiro Pereira Gomes”, publicado em 1981.
Recorda o dia em que o escritor ligado aos ideais do Partido Comunista Português teve que “dar o salto”. E lembra cada palavra desse livro que escreveu a pedido do marido. Manuela Câncio Reis está hoje deitada numa cama. Conserva uma lucidez intocável e um sentido de humor refinado, numa casa de repouso algures na Parede. Tem olhos azuis vivos e o dom da palavra. “Fechei a porta devagar, como se no largo ainda deserto o leve estalido do trinco pudesse atrair olhos tenebrosos para a nossa casa já vazia. Fiquei a escutar o ruído do táxi que se sumira na curva, levanto-te rumo à estrada. No rosto sentia ainda o calor dos teus beijos, no frenesim da despedida, e nos ombros a pressão do longo abraço que me deste tentando deixar comigo um pouco da coragem que levavas. «Serão apenas umas semanas», disseste”.
E as semanas transformaram-se em meses e anos. Em bilhetes transportados na escuridão da clandestinidade. Medo e ansiedade foram palavras que passaram a fazer parte do dia a dia da jovem de Alhandra.
O “pai” do Gineto, do Gaitinhas e do Maquineta de “Esteiros”, que tocava na guitarra as canções de Coimbra, onde estudou, tinha partido. A casa de família, à beira Tejo, estava agora vazia. Sem o olhar atento do escritor que acompanhava a vida dura dos operários meninos. “Um dia, na nossa primeira casa, abeirou-se da janela que dava para os telhais, em Alhandra. Enquanto apertava o cinto e ajeitava a gravata, sem tirar os olhos da fábrica, disse, ‘eu tenho que lá ir’”, conta Manuela Câncio Reis a recordar os breves tempos de casada na sua Alhandra Natal.
A informação que Soeiro Pereira Gomes recolhia nos telhais era matéria-prima que tratava nos tempos livres. Quando não estava ocupado com o trabalho de chefe dos empregados de escritório da fábrica Cimento Tejo, cargo que ocupou a substituir o pai da mulher, depois de vir de África onde esteve durante um ano na companhia de Catumbela (Angola) em 1930 para conseguir algum dinheiro para o casamento.
Em casa, enquanto Manuela Câncio Reis escrevia músicas no piano a cumprir o contrato com a emissora nacional, Soeiro trabalhava nos manuscritos. “Engrenagem” estava então em processo acelerado de escrita. Embrenhava-se o escritor contra a “ordem do Estado novo de Salazar”. Os dois escritórios eram divididos pelo corredor da casa que não era suficiente para impedir o som do piano de alastrar. “Muitas vezes lhe transtornei o trabalho”, lembra-se incomodada Manuela Câncio Reis, com dedos compridos e moldados por muitos anos de teclado de máquina de escrever e piano. “Uma vez começámos os dois à gargalhada. Ele perguntava: ‘olha lá, nunca mais acabas de tocar essa nota? Estou ali à espera para conseguir escrever’ …(risos). Acabei por colocar a surdina no pedal do piano”, confessa.
Na casa térrea, perto do Tejo, em Alhandra, Manuela Câncio Reis tinha sardinheiras em flor. Ainda não usava as molduras das fotografias para lembrar os seus “mortos”. Sobre a televisão, oferecida por uma prima, que lhe faz companhia na casa de repouso, estão duas imagens de Soeiro Pereira Gomes, nascido em Gestaçô, Baião, no Porto, mas que uma paixão trouxe a Alhandra. É o homem que por quem se apaixonou antes mesmo de o ver, mas que não reconheceu quando o foi visitar sob disfarce ao hospital, ainda na clandestinidade, mas já atingido nos pulmões pela doença que o vitimou. Joaquim Pereira Gomes nasceu a 14 de Abril de 1909 e partiu demasiado cedo, a 5 de Fevereiro de 1949. “O seu grande mal foi ter-se metido na política”, diz a mulher que lhe reconhece a entrega à causa da justiça e da luta contra a miséria. “Foi o grande amor da sua vida?”, pergunta-se-lhe. “Ainda é”, atesta Manuela Câncio Reis. E os olhos regressam à fotografia.

Um romance interrompido pela clandestinidade

Manuela Câncio Reis e Joaquim Soeiro Pereira Gomes apaixonaram-se antes mesmo de se conhecerem. O estudante que se consagrou como um dos grandes vultos da literatura neo-realista era camarada do irmão da futura esposa na Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra. O que sobre um e outro se dizia, e algumas fotografias, já provocavam admiração e interesse. Depois foi amor à prima vista na véspera do baile de finalistas na cidade dos estudantes. O vestido longo, encomendado num dos melhores costureiros de Lisboa, fez furor. O casamento aconteceu três anos depois, em Coimbra. Depois de uma visita que entretanto Joaquim Soeiro Pereira Gomes fez à Quinta da Viúva Câncio, avó de Manuela, na zona de Alhandra, que ainda hoje mantém o tanque onde os netos se banhavam nas tarde quentes de Verão. “Ele escreveu o nome na areia. Não se declarou, por respeito, estava na quinta a convite da família”, recorda Manuela Câncio Reis.
Entre o vestido branco com festa de casamento convencional e uma viagem, oferta do pai, Manuela Câncio Reis escolheu a Lua-de-mel. Início de uma curta vida a dois, ditada pela saída repentina de Soeiro Pereira Gomes, filho de uma família de agricultores do Douro, para a clandestinidade.
Muito à socapa, depois da fuga de Joaquim e da saída da prisão de Manuela encontraram-se por uns momentos, de fugida, em Lisboa, em casa de uns parentes do Zé Ralha, conta a sobrinha Isabel Câncio Reis Nunes em “Passagem”, uma biografia de Soeiro Pereira Gomes. E por breves momentos na pousada da Urgeiriça. Da prisão de Manuela nunca falaram. Os filhos nunca chegaram porque o casal procurava uma vida mais desafogada para constituir família. Os anos clandestinos foram duros para ambos. E não mais voltaram a ser marido e mulher.
“Como era agradável o nosso quarto com o seu tom rosa-velho e a sua janela em que espreitavam os gerânios quando abrias as vidraças, manhã cedo. Fazias ginástica e eu ficava a ver, meio ensonado, o teu corpo bem feito entregue aos exercícios a que o obrigavas todos os dias”, escreveu Manuela Câncio Reis sobre o marido. “Não gostavas de certos pratos. Por mais que disfarçássemos o pargo de ‘pescada’ ou de ‘goraz’ nunca te deixavas levar. “Cá está o crocodilo’, dizias no teu jeito brincalhão.


Cárcere no hospital e a rapariga das tranças

Manuela Câncio Reis, companheira de Soeiro Pereira Gomes nos anos que antecederam a saída para a clandestinidade, nunca conheceu o paradeiro do escritor neo-realista, mas nem isso impediu que a então jovem alhandrense conhecesse os martírios de um cárcere.
Já antes de Soeiro Pereira Gomes “saltar fora” sentia no uivar da sereia da fábrica prenúncio de má sorte. “Colhi uma braçada de sardinheiras. Pus flores em todas as jarras. E fechei o piano”, escreve. À saída repentina do marido seguiu-se a sua prisão. “Eles vieram de madrugada”, diz o título do seu livro, fiel à realidade. Às três da manhã soaram murros na porta da rua. A casa invadida por perguntas e remexida e uma mulher doente pela partida do bem amado. “Fui levada para o hospital como refém”, conta Manuela Câncio Reis.
Havia três camas de cada lado e um biombo a tapar a janela. “Na cama que me ficava em frente já tinham instalado a senhora cujo sangue lhe escorria pelo nariz e pela boca”.
Na prisão hospital, um antigo palacete, onde uma tia, irmã da mãe se tinha suicidado, os percevejos eram também inquilinos. E de um rosto claro e pele delicada fizeram poiso. Lugar odioso onde se servia um púcaro de leite em que nadavam pedaços de nata amarela e um bife uma vez por semana.
Era companheira de quarto, no hospital feito prisão, a rapariga da grossa trança doirada que se ali se sentia feliz, longe da violência do marido que a arrastava pelos cabelos. “Quem me dera ficar cá por muito tempo. Dizem que estou muito doente, mas não sei”, confessava a amiga na desventura e na caça aos percevejos que matavam juntas.
A prisão deixou marcas na mulher que pouco depois deixou Alhandra e partiu para Lisboa. “Recosto-me no maple em que repousavas nas horas de maior cansaço. Mas onde estão os dedos que passavam pelos meus cabelos, quando me anichava a teus pés, escutando coisas com que sonhavas para o futuro?”. “‘Depois de mais um ou dois romances, vou escrever livros para crianças’, dizias às vezes”.


Uma mulher à frente do seu tempo

A ausência de Soeiro Pereira Gomes foi demasiado dolorosa para Manuela Câncio Reis, que deixou Alhandra. Partiu para Lisboa em busca de um emprego que lhe permitisse a independência e também o auxílio aos pais.
O conhecimento de línguas ajudou-a. Sabia tocar piano e a elasticidade dos dedos facilitou-se a aprendizagem de dactilografia. Foram tempos difíceis. Passou alguma fome. “E quando passava por uma padaria e me vinha um cheirinho a bolos e pão quente?”, recorda sem marcas de revolta.
Virgílio Barroso, um matemático irmão de Maria Barroso, ligação entre os dois esposos separados pelo muro da clandestinidade, passou de intermediário a segundo marido. O casamento com o pai de Alfredinho, que acabou por falecer vítima de um problema cerebral, durou pouco. Manuela partiu para o divórcio, já separada de facto, ajudada por Avelino Cunhal, pai de Álvaro Cunhal, porque o marido se recusou a autorizar que viajasse para o estrangeiro (requisito à época necessário).
Manuela Câncio Reis ficou alojada em pensões em Lisboa e trabalhou como secretária na Campos Ferreira, exportador de vinhos, que compensar os funcionários pelas horas extraordinárias com espumante e jantar do Gambrinus, um restaurante luxuoso de Lisboa. Foi Campos Ferreira que lhe disse que partisse e aproveitasse as últimas horas com o marido – quando lhe chegou a notícia de que Soeiro Pereira Gomes estava prestes a sucumbir. Quando chegou ao Norte já o escritor tinha partido. Desta feita, sem promessa de regresso.


Esteiros, a inspiração de um escritor

“Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama, que só o rio afaga”.
Joaquim Soeiro Pereira Gomes imortaliza assim em “Esteiros” (1941) a vida dos “garotos maltrapilhos” a quem as solitárias mães proibiam brincadeiras para evitar que os filhos sorvessem duas sopas ao jantar. Romance paradigmático do movimento neo-realista que o escritor dedicou aos filhos dos “homens que nunca foram meninos” sujeitos a trabalhos forçados, à fome e ao rigor do sol e da chuva.
O nadador campeão Baptista Pereira, “Gineto” dos “Esteiros”, ia às quintas como outros tantos meninos roubar laranjas. “Chegou a cruzar-se com a minha avó, carregado, tapava o rosto com as mãos e dizia: ‘Muito boa tarde minha senhora”’, recorda Manuela Câncio Reis.
“Cabelo em desalinho, gravata às três pancadas, os sapatos enlameados, mãos sujas da pá com que escavavas a charca ao lado dos trabalhadores. Andavas numa azáfama, planeando, organizando coisas para o bem dos outros. Desesperado com a falta de recursos, mas lutando sempre contra os preconceitos, contra más vontades, contra a guerra de sapa que já te movia quem não se encarava com bons olhos”, escreve a esposa que partilhou a casa em Alhandra, frente aos telhais, onde o escritor se inspirou para a obra.
“Há que ter fé nos homens. Nem toda a gente é má”, augurava o escritor. “Melhores dias hão de chegar”. Dizia a sonhar com o dia da liberdade. Um dia que, para Soeiro Pereira Gomes, que partiu a 1949, chegou tarde demais. Tão só na madrugada de 1974.


Quartel-general num moinho ribatejano

No final dos anos 30 do século XX Soeiro Pereira Gomes adere ao PCP. Ingressa na célula da empresa e pouco depois integra o comité local de Alhandra. Na sua casa, em Alhandra, reuniam-se intelectuais. Enquanto o regime de Salazar tentava abafar o holocausto Soeiro Pereira Gomes abria a janela da sua casa de um só piso, em Alhandra, para que os populares escutassem na rádio a informação da emissão portuguesa da BBC, às 21h00, já que os cafés estavam proibidos de ligar os aparelhos de rádio àquela hora.
António Dias Lourenço foi um dos companheiros nos passeios de intelectuais no Tejo até ao palácio das Obras Novas, em Azambuja. “Podia-se conversar à vontade e discutir sem perigo largos problemas ligados à luta anti-fascista” escreve o ex-director do jornal “Avante”.
Já na clandestinidade, a partir de um moinho, situado entre Vaqueiro e Pernes, Joaquim Soeiro Pereira Gomes, como responsável do Comité Regional do Ribatejo, promoveu a constituição e acompanhamento, entre 1945 e 1946, dos Comités Locais de Santarém, Vale Figueira, Alpiarça, Rio Maior, S. João da Ribeira, além de núcleos na Marmeleira e na Ribeira de Santarém.

Exposição em Alhandra

Uma exposição sobre o percurso do escritor neo-realista Soeiro Pereira Gomes, que viveu em Alhandra, vai ser inaugurada , na Galeria Augusto Bértholo, no Museu Sousa Martins. O evento pretende assinalar os 100 anos do nascimento do autor que nasceu a 14 de Abril (1909-1949). “Vamos abordar a obra literária, mas também a dedicação à terra. Foi filho adoptivo, mas trouxe inúmeros benefícios”, explica Artur Gomes, membro do PCP de Alhandra.
O homem que ajudou a construir a piscina de Alhandra para que se evitassem as correntes traiçoeiras do Tejo, participou no processo de alfabetização das gentes da terra e ajudou a reunir o espólio das bibliotecas do Alhandra Sport Club e da Sociedade Euterpe Alhandrense que continuam desactivadas.
 
 
 

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