sábado, 19 de março de 2011

Gerações " à rasca " ...



A meu ver, quando se parte de premissas erradas, os resultados estão à vista!
Neste contexto, e já há algum tempo, Mia Couto com toda a lucidez
que lhe é intrínseca, escreveu mais um texto notável, que sugiro
vivamente ...

(Texto transcrito de um mail que recebi )

Geração à Rasca - A Nossa Culpa

Um dia, isto tinha de acontecer.
Existe uma geração à rasca?
Existe mais do que uma! Certamente!
Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa
abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes
as agruras da vida.
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar
com frustrações.
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também
estão) à rasca são os que mais tiveram tudo.
Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância
e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus
jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.

> Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a
> minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos)
> vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós
> 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
> Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram
> nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles
> a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes
> deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de
> diversão, cartas de condução e 1º automóvel, depósitos de combustível
> cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as
> expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou
> presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
> Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o
> melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas
> vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não
> havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado
> com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
>
> Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A
> vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
>
> Foi então que os pais ficaram à rasca.
> Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem
> Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde
> não se entra à borla nem se consome fiado.
> Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar
> a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de
> aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a
> pais.
> São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e
> da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que
> os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade,
> nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
>
> São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter
> de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e
> que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm
> direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas,
> porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem,
> querem o que já ninguém lhes pode dar!
>
> A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo
> menos duas décadas.
>
> Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
> Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por
> escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na
> proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que
> o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois
> correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade
> operacional.
> Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em
> sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso
> signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas
> competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
> Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por
> não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração
> que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que
> queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a
> diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que
> este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
> Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo
> como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as
> foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
> Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não
> lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
> Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
> Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de
> montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o
> desespero alheio.
>
> Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e
> inteligência nesta geração?
> Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
> Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no
> retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e
> nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como
> todos nós).
> Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados
> pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham
> bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados
> académicos, porque, que inveja!, que chatice!, são betinhos, cromos
> que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e,
> oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a
> subir na vida.
>
> E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos
> nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares
> a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no
> que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida
> e indevidamente?!!!
>
> Novos e velhos, todos estamos à rasca.
> Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
> Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme
> convicção de que a culpa não é deles.
> A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem
> fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e
> a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la.
> Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
> Haverá mais triste prova do nosso falhanço?
> Pode ser que tudo isto não passe de alarmismo, de um exagero meu, de
> uma generalização injusta.
> Pode ser que nada/ninguém seja assim.

1 comentário:

  1. Excelente. Subscrevo cada palavra, encontrei aqui exactamente o que penso sobre a actual rasquice. Um abraço.

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