Uma pequena homenagem a Vasco Graça Moura, defensor acérrimo da língua portuguesa
UM LAMENTO Á LINGUA PORTUGUESA
A LNGUA PORTUGUESA, FAZ HOJE 800 anos
não és mais do que as
outras, mas és nossa,
e crescemos em ti.
nem se imagina
que alguma vez uma
outra língua possa
pôr-te incolor, ou
inodora, insossa,
ser remédio brutal,
mera aspirina,
ou tirar-nos de vez
de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova
e repentina.
mas é o teu país que
te destroça,
o teu próprio país
quer-te esquecer
e a sua condição te
contamina
e no seu dia-a-dia te
assassina.
mostras por ti o que
lhe vais fazer:
vai-se por cá
mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas
a perder
e fazes com que fuja
o teu poder
enquanto o mundo vai
de nós fugindo:
ruiu a casa que és do
nosso ser
e este anda por isso
desavindo
connosco, no sentir e
no entender,
mas sem que a
desavença nos importe
nós já falamos nem
sequer fingindo
que só ruínas vamos
repetindo.
talvez seja o
processo ou o desnorte
que mostra como é
realidade
a relação da língua
com a morte,
o nó que faz com ela
e que entrecorte
a corrente da vida na
cidade.
mais valia que fossem
de outra sorte
em cada um a força da
vontade
e tão filosofais
melancolias
nessa escusada busca
da verdade,
e que a ti nos
prendesse melhor grade.
bem que ao longo do
tempo ensurdecias,
nublando-se entre nós
os teus cristais,
e entre gentes
remotas descobrias
o que não eram notas
tropicais
mas coisas tuas que
não tinhas mais,
perdidas no enredar
das nossas vias
por desvairados,
lúgubres sinais,
mísera sorte,
estranha condição,
mas cá e lá do que
eras tu te esvais,
por ser combate de
armas desiguais.
matam-te a casa, a
escola, a profissão,
a técnica, a ciência,
a propaganda,
o discurso político,
a paixão
de estranhas
novidades, a ciranda
de violência alvar
que não abranda
entre rádios,
jornais, televisão.
e toda a gente o diz,
mesmo essa que anda
por tal degradação
tão mais feliz
que o repete por luxo
e não comanda,
com o bafo de hienas
dos covis,
mais que uma vela vã
nos ventos panda
cheia do podre cheiro
a que tresanda.
foste memória, música
e matriz
de um áspero combate:
apreender
e dominar o mundo e
as mais subtis
equações em que é
igual a xis
qualquer das
dimensões do conhecer,
dizer de amor e
morte, e a quem quis
e soube utilizar-te,
do viver,
do mais simples viver
quotidiano,
de ilusões e
silêncios, desengano,
sombras e luz,
risadas e prazer
e dor e sofrimento, e
de ano a ano,
passarem aves,
ceifas, estações,
o trabalho, o
sossego, o tempo insano
do sobressalto a vir
a todo o pano,
e bonanças também e
tais razões
que no mundo costumam
suceder
e deslumbram na só
variedade
de seu modo, lugar e
qualidade,
e coisas certas,
inexactidões,
venturas,
infortúnios, cativeiros,
e paisagens e luas e
monções,
e os caminhos da
terra a percorrer,
e arados, atrelagens
e veleiros,
pedacinhos de
conchas, verde jade,
doces luminescências
e luzeiros,
que podias dizer e
desdizer
no teu corpo de tempo
e liberdade.
agora que és refugo e
cicatriz
esperança nenhuma
hás-de manter:
o teu próprio domínio
foi proscrito,
laje de lousa gasta
em que algum giz
se esborratou informe
em borrões vis.
de assim acontecer,
ficou-te o mito
de haver milhões que
te uivam triunfantes
na raiva e na oração,
no amor, no grito
de desespero, mas foi
noutro atrito
que tu partiste até
as próprias jantes
nos estradões da
história: estava escrito
que iam
desconjuntar-te os teus falantes
na terra em que
nasceste, eu acredito
que te fizeram avaria
grossa.
não rodarás nas rotas
como dantes,
quer murmures, escrevas,
fales, cantes,
mas apesar de tudo
ainda és nossa,
e crescemos em ti.
nem imaginas
que alguma vez uma
outra língua possa
pôr-te incolor, ou
inodora, insossa,
ser remédio brutal,
vãs aspirinas,
ou tirar-nos de vez
de alguma fossa,
ou dar-nos vidas
novas repentinas.
enredada em vilezas,
ódios, troça,
no teu próprio país
te contaminas
e é dele essa miséria
que te roça.
mas com o que te
resta me iluminas.
Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"
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